Identidade Negra: Descaminhos
Gilberto, A. Ferreira *
Como ser negro em um mundo branco?
Historicamente perdemos o contato
com o mundo de onde viemos, a Africa, e por consequência também perdemos o
contato com a cultura, a religião e o mais importante, a ancestralidade. Na
busca desordenada do elemento negro para identificar-se, tenho observado as
mais diversas formas de incursões nos mundos culturais e sócio-políticos e
notado a profunda insatisfação da procura sem os elementos básicos para uma
identificação satisfatória. Se não conhecemos a nossa origem não poderemos nos
identificar. Os negros escravos no Brasil aprenderam a viver com os brancos
dentro de uma sociedade branca e repassaram isto para as gerações Futuras, criando
o quadro que hoje se observa no
dia-a-dia do negro. Mas é importante notar que ao lado deste caos existem alguns
grupos que estão solidamente identificados ê que, por isto, são discriminados e
alijados da própria sociedade negra, que não aceita mais a identidade
ancestral, pois ela foi perdida no processo da escravidão, na pré e pós libertação,
assim como durante a luta dos ex-escravos para viver ern uma sociedade branca.
Estes grupos identificados
com a origern africana. ficaram conhecidos como macumbeiros, feiticeiros,
candomblezeiros e outros apelidos pejorativos, E, apesar de todos os problemas
causados pela sociedade branca e pelo elemento negro de ideologia branca nela
incluído, estes grupos se conservaram coesos e cada vez mais fechados para
todos os elementos da sociedade dominante, seja ele branco ou branqueado.
Busca desordenada, Origem desconhecida
Em 1850 o negro, ainda
escravo, tinha fortes laços que o prendiam solidamente às suas origens. Por
isto, tudo o que fazia tinha por base
sua própria cultura. A sociedade branca, escandalizada, clamava a todos os
poderes constituídos da época, contra a crescente negritude dos grupos que desfilavam
nas ruas da Bahia durante os festejos do momo, Nessa ocasião, os europeus, de um
lado, formavam bandas de entrudos e súcias, verdadeiros grupos de destruição da
ordem estabelecida; de outro lado, apareciam os primeiros afoxés e maracatus,
Assim, segundo os intelectuais da época a cidade de Salvador se transformava
num verdadeiro pandemô- nio, pois a desordem imperava nos quatro cantos da cidade
e esta desordem tinha que acabar a qualquer custo. Os afoxês e os maracatus são
o primeiro sinal publico que o negro dava de sua organização e demonstrava também
que não havia perdido totalmente a sua identidade como pretendiam os senhores
da cultura branca. E importante observar que esses grupos são oriundos de casas
de candomblés, pois os afoxés obrigatoriamente saíram de lá, assim como os seus
integrantes. Tínhamos os primeiros negros duplamente identificados, primeiro religiosamente
e segundo culturalmente, isto não poderia ficar impune. Tinha que se dar um basta,
de uma vez por todas, a esta "coisa tão horrorosa": negros organizados,
vestidos e até calçados! E a polícia entra em ação a imprensa ajuda, o governo apoia,
e o negro luta com todas as armas que dispõe: a malícia a capoeira e as mais
importantes de todas elas, a teimosia e a paciência. Esta luta leva quase um
século, sem que se apresentem resultados práticos. Não há vencedores nem vencidos,
só há destruição. A malemolência do negro será vencida pela introjeção da raça
branca. Surge dai o negro de alma branca, apático, dócil, que foge dos seus e
de sua própria ancestralidade, ainda latente, pulsando dentro de si e o
acusando de covardia.
Nestes tempos para ser negro
era preciso, antes de tudo, ser branco. Mas como ser branco e não esquecer de
ser negro? A identidade tinha que estar perfeitamente ajustada não só no corpo
mas também no espírito, e isso raramente acontecia, pois ser branco era mais
fácil e mais lucrativo; era mais fácil ser cristão do que pagão, Ai então o
negro passou a adorar deuses brancos, relegando a um segundo plano seus orixás
e também sua cultura. Pois um filho que vê seu pai apanhar e morrer por uma
coisa raramente a fará também, sua tendência é esquecer o passado e projetar um
novo futuro para si e para os seus. Chega de sofrimentos. Basta de mortes. Agindo
assim o negro se afasta cada vez mais de suas origens, moreniza-se,
branqueia-se, coloca tudo no inconsciente individual, que mais tarde explodiria
de forma coletiva mas, infelizmente, desorganizada.
O candomblé passa pelo mesmo
processo e se mantém incólume, fechado em seus guetos nos mais recônditos e
afastados locais, longe de toda esta
confusão, mantendo assim sua memória viva, pois seus ancestrais estão vivos, como
vivos estão seus orixás trazidos da longínqua África. O que viria depois a ser
chamada de cultura em conserva habilmente disfarçada através do sincretismo,
foi criada pelo medo não só do branco, mas também do negro branqueado, mais
perigoso ainda, pois além de traidor frio era totalmente leal ao branco. Este
elemento turvo de origem duvidosa, a serviço da sanha assassina de quem paga
melhor seus serviços. Foi denominado pelos negros tradicionalistas de omeran e
pelos brancos de mulato. Entre marchas e contramarchas chegamos ao tempo do
cinema e da Segunda Guerra Mundial. Nessa época tínhamos basicamente três tipos
de raças no Brasil: nos extremos o branco dominante e o negro dominado, e no
meio o branqueado traidor, vendido ao branco e sem identidade.
Busca cega
Durante este período. o
Brasil passa por grandes transformações , assim como seu povos. O negro e o
miscigenado não branqueado procuram fórmulas de identidade. O desenvolvimento
da imprensa e a propaganda americana influenciarn, de modo fundamental, essa
busca, fazendo o resto das cabeças entrar em pane. Os tradicionalistas lutam
contra seus próprios filhos, que agora relutarn em aceitar seus preceitos
ancestrais e. ao mesmo tempo, não aceitam a cultura branca, tendo a preocupação
de assumirem uma identidade entre as duas, criando uma terceira, indefinida. Os
cinemas do Brasil estão sobrecarregados de filmes americanos que mostram algo
parecido com o que ocorre com os negros brasileiros: o massacre dos índios. Sem
ter como denunciar seu próprio sofrimento, o negro passa a se identificar com o
índio americano e aí surgem os primeiros blocos de índios no Brasil. Não era a denúncia do
massacre feito pelo branco americano, mas sim do massacre feito contra o negro
brasileiro. disfarçado pelo sincretismo de índio americano que na realidade,
não levava a nada. Satisfazia apenas aqueles que não tinham outra forma de
denunciar seus próprios males, senão aquela muito sutil, que só
seria percebida muitos anos depois
pelos próprios negros de maneira amarga. Percebendo isto se sentiam, mais uma vez,
impotentes ante uma civilização tão poderosa que os aniquila por dentro e os
branqueia por fora.
Que fazer? Explodem então,
pelo Brasil, as mais diversas formas de busca da identidade perdida: escolas de
samba, blocos carnavalescos, movimentos políticos negros, mas tudo de acordo
com as normas brancas, contudo, ocorre um fato que passa desapercebido pelo
negro, pois por mais que ele tente imitar o branco termina por fazer de modo
negro e por isso se repele.
0 negro não consegue entender
porque apesar de estudar e observar todos os preceitos e normas brancas, acaba fazendo
tudo errado. A meu ver a razão é muito simples: O inconsciente coletivo atuante
fez com que as coisas não dessem certo, pois o indivíduo fez uma coisa quando
queria fazer outra. Se o branco introjetou no negro seus hábitos e este tinha
seus próprios hábitos gravados nos seus códigos genéticos, a partir dai o negro
faz uma coisa querendo fazer outra, e não acerta. Mas mesmo tendo alguma chance
de acertar, o branco acabará com ela, porque está também introjetada no branco
a ideia da superioridade branca daí o branco deverá acabar com esta chance de
acertar, que ele considera uma anomalia.
Para nós, negros dizemos
inconsciente coletivo e para os brancos consciente coletivo ou será sentido de autopreservação?
Então uma coisa fica patente, o negro não pode e não deve se organizar. O
branco intenta impedir isso a todo custo e a luta segue por aí. Mas o candomblé
existe. E o negro, e agora também o branco, passam a frequentá-lo para proteger-se
do perigo representado pela religião católica e pelos outros predadores
naturais, quais sejam o branco radical e o negro branqueado. E o candomblé
consegue passar incólume pelos dois e continua sua luta solitária pela preservação
da cultura, e seus integrantes se sentem seguros e não ameaçados. Lá fora o
caos é completo; o negro não consegue se entender e nem se fazer entender; o
branco oportunista faz com que as organizações negras concorram umas com as
outras, ou use uma estratégia mortal apadrinhando uma em detrimento das outras,
matando assim ambas. Ou então o branco deixa frente a estas organizações aquele
negro conhecido como Pai João. E o bloco do meio, formado pelos branqueados,
avança nesse processo de não aceitação dos elementos de ambas as culturas (branca
e negral).
Outros movimentos são gerados
pelas lutas de libertação da África austral, pelo exílio de alguns negros na
Europa e a ida de outros para a África. Mais uma vez a Bahia é o embrião dos
movimentos, é o local de teste. Surgem aí os blocos afros com preocupação
cultural. mas sem compromisso religioso. Seus temas trazem a luta da África
austral mas não trazem os inkisis nem os embambas. muito menos suas lendas e
mitos, pois isto não interessa à nova ideologia do socialismo branco. Mais uma
vez o mesmo discurso antigo: seja negro mas tenha pensamento branco! E o negro
vai fundo, aprende ou procure aprender â ser um bom negrinho socialista ou sei
lá o que, contanto que seja branco.
Com a negritude crescente a confusão
gerada também é grande e maior ainda ê a negação da ancestralidade. O negro não
admite olhar para trás de si próprio, tem medo de ser chamado de ignorante e
busca as fórmulas aprovadas pelos brancos e escritas por eles, Assim o negro
acha que a sua cultura está no Egito e no Sudão, valorizados pelo mundo branco
corno a grande cultura africana. Ou na Etiópia e na Jamaica, através da filosofia
rastafári e da valorização do reggae. Ou então na Angola e no Moçambique pelo
significado que têm de luta de libertação do negro. Temos assim a desinformação
gerando a cultura.
Hoje o Brasil está sendo
palco das mais diversas manifestações. Todos querem ter a maioria a seu lado,
todos querem ter a razão e o negro é mais uma vez objeto de rnanobra, Grandes
pensadores procuram a solução para a causa negra. Vários debates, seminários,
simpósios, congressos, são feitos sobre o negro. 0 branco coloca que tem que
dar uma solução ao caso ou
correr o risco de perder as eleições. Sente que tem que dar cargos aos negros
que considera representativo mas que eu considero Pai Joáo e pensa que é
obrigado a promover a cultura. Enfim, tem que arrumar alguma coisa para calar a
negritude crescente que existe dentro do negro insatisfeito com tudo e com
todos.
Apesar disto, o
candomblezeiro vive em paz consigo mesmo e com os outros; ele é forte e tem a
proteção dos ancestrais; ele não morre; ele não é destruído; ele vive uma vida
negra baseada em princípios negros dentro de um sistema branco que agora o
respeita mais, até mesmo porque tem medo de sua feitiçaria que embora não
exista está assim introjetada.
' Ogan Axogum, Presidente do
Têrreirô de Candomblé Ile Iya mi Osun Muiywa, Presidente do Afoxé ' Filhos da
Coroa de Dadâ 'Ilê Omô Dadâ), Vice Presidente para o Brasil do International Congresso
of Orisa tradition and Culture
Rev, São Paulo em Perspectiva,
2(2):27-29. abr/jun. 1988
OBS: COPIE, REPRODUZA MAS CITE A FONTE
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